Terça-feira, 4 de março
de 2003
As fissuras na aliança
ocidental
MARCOS PRADO TROYJO
O ano de 2003 deve apresentar
três "traços
fortes" em termos de fluxos de poder e riqueza pelo
mundo:
Guerra contra o Iraque;
esfriamento da economia mundial e fissuras na aliança
ocidental.
Estes três pontos perpassam necessariamente uma "radiografia" do
quociente de poder e das motivações dos EUA
- e particularmente sua afinidade com o resto do Ocidente. É de
especial relevo o tom que o presidente Bush imprimirá à sua
abordagem do sistema de segurança coletiva nos dias
que antecedem a deflagração das hostilidades
no Iraque. Interessa muito especular sobre os resultados
- para os EUA e para a Europa - de uma bem-sucedida intervenção
norte-americana no Iraque sem o aval da ONU. Será interessante
acompanhar o grau de coesão e consenso interno na
União Européia durante todo o processo pré,
durante e pós-intervenção no Iraque.
Do ponto de vista econômico, é certo que a
guerra no Iraque se somará à contração
cíclica nos EUA, na Europa e no Japão para
desidratar e desaquecer ainda mais o crédito e a demanda
externa. A estiagem de capitais estacionados pelo mundo dificultará a
importação de poupança pelos mercados
emergentes via emissão de títulos. Com a agenda
econômica ocultada pela geopolítica, não
se observarão progressos significativos, por exemplo,
nas reuniões de seguimento pós-Doha no âmbito
da OMC ou no primeiro ano de negociações da
Alca.
A América Latina como um todo permanecerá em
sua incapacidade sistêmica de geração
de choques endógenos de demanda e a Ásia não
representará mercado-destino significativo para exportações.
No caso brasileiro, mantidas as taxas positivas na balança
comercial (de mais de US$ 2 bilhões nos primeiros
60 dias), o superávit do ominoso 2003 será absolutamente
idêntico ao do conturbado 2002.
Em termos estratégicos, a opção dos
EUA por um hamletiano "não ser" como ator
multilateral tem deixado a Europa em parafuso. A falta de
unicidade na construção de uma posição
política da Europa singulariza a Política Agrícola
Comum (PAC) como exemplo solitário de coesão
entre os países comunitários.
Faltam os essenciais consensos
na conformação
de política externa e de defesa comuns. Na ausência
destas, a Europa pode muito pouco como ator mundial relevante.
Os elementos logístico-militares de um fortalecimento
geopolítico da Europa deveriam vir do eixo Paris-Berlim.
No entanto, com o acirramento da retórica de guerra
contra Bagdá, outros atores europeus se têm
afastado da França e da Alemanha no discurso que prega "mais
tempo" para os inspetores de verificação
de armas no Iraque. Nesse quadro, um grupo de países
(Reino Unido, Espanha, Itália, etc.), demonstrando
a inviabilidade de tomada de posição "una" do
Velho Mundo, aderiu à política de Washington
contra o regime de Saddam Hussein.
Essas diferenças acentuam quão artificial é a "União" Européia.
Pretendida por Jean Monet como forma de - pela via da integração
- dissuadir novas guerras intra-européias, a dinâmica
comunitária contou com o apoio histórico dos
EUA, que enxergava na prosperidade do Velho Mundo uma arma
contra o "canto da sereia" do comunismo soviético.
Gastos com defesa, que consumiriam parte importante do esforço
europeu de poupar nos últimos 50 anos, foram absorvidos
em grande medida pela Otan, que agora tem também seu
papel questionado com a cisão que contrapõe,
de um lado, países como EUA, Reino Unido, Itália
e Espanha e, de outro, sobretudo França e Alemanha. É como
se "novas forças" (Blair, Aznar, Berlusconi)
estivessem à frente de um outro europeísmo,
distante dos dogmas de Maastricht e da "Velha Europa" (de
franceses e alemães) que historicamente têm
liderado a dinâmica comunitária.
Neste processo, os "novos europeus" sucedem, em
seus próprios países, a "velhos europeus" (Aznar
ao PSOE de Felipe González e Berlusconi a Prodi e
aos vários governos "bruxelistas").
Com essas fissuras na aliança ocidental, a própria
ONU e sua tão demandada reforma também obsolescem.
A ONU passa cada vez mais a ser irrelevante, segundo o próprio
vaticínio de Bush. Nesse quadro, ONU e "Velha
Europa" tenderiam a ter seus papéis muito diminuídos,
especialmente se observarmos a seguinte combinação
de cenários:
A guerra contra o Iraque
se move em velocidade semelhante à da
intervenção de 1991, acrescida de uma - breve
- operação de guerrilha para o assalto a Bagdá e
a captura, ou assassinato, de Saddam Hussein.
No caso de captura, os EUA
buscam resgatar parte da hipoteca da legitimidade e legalidade
da ação militar
submetendo o ditador iraquiano a um tribunal internacional
para julgamento de genocídio e crimes contra a humanidade,
em Haia.
No caso de assassinato,
este é mais bem assimilado
pela comunidade internacional se for, ao menos "cosmeticamente",
perpetrado pela oposição a Saddam e por dissidentes
iraquianos. Libertados da opressão pela águia
americana, a imagem dos próprios iraquianos matando
Saddam com as mãos elevará Bush a níveis
hollywoodianos de popularidade e aceitação
não apenas nos EUA, mas em todo o mundo.
No cenário pós-Saddam, o Iraque percorre um
processo de aglutinação étnica e política
semelhante ao que levou Hamid Karzai ao poder no Afeganistão
pós-Taleban. Quer dizer, se a liderança iraquiana
vier a partir de uma figura capaz de normalizar as relações
do Iraque com o Ocidente e dialogar com o mundo do Islã,
Bush "salva a cara". Dada a penúria do povo
iraquiano nos últimos 12 anos, qualquer retomada de
investimentos engendrada por uma nova liderança, secular
e sintonizada com o Ocidente, terá imensa repercussão
social e de aprovação do novo regime por parte
da sociedade - e Bush levará o crédito.
Em suma, se uma intervenção de Bush - ainda
que sem o aval da ONU, sobre os fragmentos da aliança
ocidental e insensível aos apelos planetários
por paz -, promover a "felicidade geral da nação" no
Iraque, a comunidade internacional terá dificuldades
de se olhar no espelho. A "ética de princípios" será vencida
pela "ética de resultados". Com esta, Bush,
incidentalmente, daria expressão contemporânea à maquiavélica
relação entre meios e fins - para deleite de
seus falcões.
Marcos Prado Troyjo, vice-presidente do Grupo Brasilinvest
e do Fórum das Américas, é professor
do MBA em Comércio Internacional da USP e de Relações
Internacionais da Fundação Armando Álvares
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