Quem te viu...
Cinco anos depois da moratória, um país autoritário
e capitalista volta a ser levado a sério como grande
potência. Por ANTONIO
LUIZ M. C. COSTA
Depois de ter promovido o “desaparecimento”
de mais de 900 separatistas chechenos e de comprar ou vetar
os candidatos a Presidência da Chechênia que não
lhe agradavam o presidente russo Vladimir Putin assegurou
favorável ao candidato que havia indicado para a eleição
de 5 de outubro, Akhmad Kadyrov.
Em outros tempos, a recaída
autoritária teria atraído enfáticas condenações
internacionais. Mas Washington não está em condições
de jogar pedras no telhado vizinho. O Iraque jamais lhe pertenceu,
enquanto a soberania da Rússia sobre a Chechênia
é mais antiga que a dos EUA sobre o Texas ou a Califórnia.
A Europa tembém não
interessa criar caso. Já há quem nela defenda
inverter as alianças da Guerra Fria e buscar o apoio
russo para contrabalançar os Estados Unidos. Só
Moscou, com seu poderio nuclear e antiaéreo e suas
abundantes reservas de gás e petróleo, seria
capaz de impedir Washington de chantagear a Europa com seu
poder aeronaval e seu controle das reservas do Golfo Pérsico.
Depois de escapar da fragmentação
e voltar a crescer de forma aparentemente sustentada, a Rússia
volta a ser cortejada pelas demais potências como chave
do equilibrio internacional e do jogo estratégico em
torno do coraçào da Eurásia.
No mês passado, durante a
visita de Putin a assembléia geral da ONU e aos EUA,
o bilionário russo Boris Berezovski, asilado no Reino
Unido publicou uma carta aberta nos principais jornais dos
EUA e Europa na qual acusou o presidente russo de cometer
genocídio, submeter o Parlamento, os tribunais e a
imprensa e até de Ter planejado os atentados terroristas
de 1999 que levaram Boris Yeltsin a nomeá-lo primeiro-ministro
e autorizar a invasão da Chechênia.
Berezovski gastou verbo e verba
ä toa.
Desde que Putin ajudou Bush a esmagar o Taleban, a Casa Branca
fechou os olhos a questão chechena, reclassificando
os separatistas como “terroristas islâmicos”.
Mesmo depois de unir-se a França e a Alemanha na crítica
a política dos EUA no Iraque, a Rússia foi tratada
pela equipe de Bush com mais carinho e respeito do que aqueles
dois tradicionais aliados de Washington. A instabilidade criada
pelo unilateralismo agressivo dos EUA deu a Rússia
condições ideais como fiel da balança
do poder mundial.
Os europeus supõem que os
russos, por Ter 38% do seu comércio exterior voltado
para União Européia e outros 17% para o resto
da Europa, teriam todo o interesse em aproximar-se da Europa.
Mas pode não ser bem assim.
Putin é ambíguo na
questão ambiental, o que desaponta os europeus. Depois
de prometer assinar o Protocolo de kioto, voltou atrás
e adiou a decisão. Para ela, manter a emissão
de gás carbônico 20% abaixo do nível de
1990 ( ainda bem superior ao atual ) nào é tão
difícil mas seu lobby petrolífero não
quer limites ao consumo global de combustíveis.
Mas a Rússia também
não quer uma exportação excessiva. Não
por acaso, hoje o maior aliado de Berezovski na Rússia
é Mikhail Khodorkovski, periodicamente ameaçado
com a revisão da privatização da YUCOSSIBNEFT-
maior petrolífera privada do mundo em reservas e a
Quarta em produção.
Os russos poderiam facilmente produzir
mais que os sauditas, mas isso derrubaria o preço do
produto, supervalorizaria o rublo, inibiria investimentos
em outros setores e condenaria o país a eterna dependência
do mercado de commodities, como se dá com a Venezuela.
O governo continua proprietário dos dutos, limita sua
expansào para controlar a exportação
e alia-se na prática, a OPEP.
Além disso, como grande
produtor agrícola e siderúrgica, a Rússia
une-se aos grandes países periféricos do G21
contra as barreiras alfandegárias dos EUA, da Europa
e do Japão, aos quais também se opõe
na ambição de reafirmar sua influência
sobre as ex-repúblicas soviéticas.
A Rússia mantém uma
relação estratégica com a China- sua
maior parceira comercial fora da Europa- como fornecedora
de equipamentos nucleares e armamentos avançados. A
Índia, os árabes e o Irã continuam grandes
clientes nessa área, para desgosto dos EUA.
Pode-se pensar que as armas russas-
5% de suas exportações- já seria obsoletas
demais para desafiar as norte-americanas, mas não é
bem assim. O sistema antiaéreo S-300 é mais
eficaz que o PATRIOT, apesar de depender de um minicomputador
operado com fita magnética. O torpedo Shkval é
cinco vezes mais veloz que os norte-americanos. A Rússia
continua a Ter excelentes engenheiros e, na guerra como na
econômia, informática não é tudo.
Um longo caminho foi percorrido
desde que a URSS caiu. Se o comunismo não existe, tudo
é permitido, pensaram entào os ex-comissários
do povo, aliados as máquinas formadas no submundo da
decadência soviética. Saquearam sem piedade as
indústrias ainda capazes de funcionar e dilapidaram
freneticamente os estoques de combustíveis e matérias-primas
do país, derrubando seus preços internacionais
de forma a enriquecer as indústrias dos países
centrais a custa dos países periféricos exportadores
de commodities.
A qualidade de vida na Rússia
retrocedeu de uma forma que não se via desde as privatizações
da Segunda Guerra Mundial. A taxa de mortalidade subiu 45%-
1,5 milhão de mortos por ano a mais no conjunto da
ex-URSS. O custo humano dos primeiros sete anos de restauração
do capitalismo por Boris Yeltsin foi comparável ao
da coletivização forçada por Stalin.
Enquanto isso, a nova plutocracia encabeçada pelo magnata
da mídia e das finanças Boris Berezovski, enviou
mais de US$ 120 bilhões para o Ocidente.
Essa oligarquia armou, porém,
uma bomba-relógio financeira ao deixar de viabilizar
susa empresas com uma administração responsável
e seu Estado com os impostos indispensáveis a sua manutenção.
A dívida pública tornou-se uma pirâmide
financeira insustentável e a econômia foi reduzida
ao escambo.
Em março de 1998, Yeltsin
afastou o primeiro-ministro Viktor Chernomyrdin, seja para
tentar evitar o desastre, seja para preservar as possibilidades
eleitorais daquele que via como seu sucessor. Pôs em
seu lugar o tecnocrata liberal Serguei Kiriyenko, só
para rifá-lo logo após a moratória de
agosto, cujas repercussões resultaram na crise cambial
brasileira e na aceleração da fuga de capitais
de países emergentes para os EUA, que inflou a bolha
da “nova econômia”.
Yeltsin voltou a nomear Chernomyrdin,
mas desta vez enfrentou inesperada oposição
da DUMA, o Parlamento russo.
Uma aliança de comunistas, nacionalistas de direita,
setores agrários e liberais menos corruptos ( ou fora
do governo ) vetou por ampla maioria a renomeação
do responsável pelo desastre.
Foi então nomeado Yevgueny
Primakov, mas esse veterano da KGB, respeitado pela oposição,
investigou remessas ilegais para Jersey e Suiça, que
envolviam parentes e amigos de Yeltsin. Em maio de 1999, quando
o próprio Berezovski foi detido, o presidente trocou
Primakov por um assessor leal, Serguei Stepashin, ao qual
deu a tarefa de retirar as acusações contra
Berezovski e abafar o escândalo.
Três meses depois, contudo,
separatistas da Chechênia invadiram o vizinho Daguestão
para tentar criar outro Estado islâmico, ação
acompanhada por explosões que mataram 300 pessoas em
várias cidades russas, então atribuídas
a terroristas chechenos. Mas Stepashin temia voltar a esse
pântano. Havia coordenado a fracassada guerra contra
a Chechênia entre 1994 e 1996, que, depois de fazer
100 mil mortos, terminou com uma humilhante retirada russa.
O separatismo já ameaçava,
entretanto, também o Tatarstão, grande Estado
muçulmano no coração da Rússia,
e até a Sibéria, quq detém a maior parte
das riquezas naturais do país. O renascente nacionalismo
russo não admitia transigir com essa ameaça
de desintegração total. Com o apoio de Berezovski,
Yeltsin trocou Stepashin pelo linha-dura Vladmir Putin, ex-agente
da KGB e então comandante de sua sucessora, a FSB.
Muitos consideram Putin mais um
membro da “Família” do Kremlin e apostaram
que nada mudaria. Manteve-se leal a pessoa de Yeltsin, é
verdade, mas aproximou-se de Primakov e consolidou a formação
de um bloco hegem6onico autoritário, mas competente,
aparentemente respaldado por uma facção menos
predatória e mais nacionalista da nova burguesia russa.
Em dezembro, o adoentado Yeltsin
cedeu a Presidência a Putin em troca de uma generosa
pensão e imunidade a processos por corrupção.
Juntamente com a reconquista da capital da Chechênia,
a recuperação econômica, ajudada pela
recuperação do petróleo ( devido a rearticulação
da OPEP após a posse de Hugo Chavez na Venezuela )
impulsionou a popularidade de Putin, que venceu as eleições
presidenciais de março de 2000 com 53% dos votos.
No fim de 2000, o novo presidente
reabriu as investigações sobre Berezovski e
seu rival na mídia, Vladimir Gusinski. Ambos julgaram
prudente exilar-se em Londres. Berezovski passou a agir como
um Trotski as avessas e a denunciar o regime que havia ajudado
a instaurar.
No ano seguinte, a Duma aprovou
por maioria esmagadora a proibição a “estrangeiros
e cidadãos com dupla cidadania” de controlar
redes de tevê de alcance nacional. Ambos os bilionários
eram detentores de passaportes israelenses e tiveram de vender
a maior parte de suas emissoras, cuja retomada pelo Estado
se completou em junho de 2003.
O setor privado ficou restrito
a meios de alcance local. Embora haja mais liberdade de expressão
na Rússia de hoje do que na maior parte de seu passado,
vários jornalistas morreram em cirscunstâncias
suspeitas e dezenas sofreram agressões físicas
depois de criticarem o governo ou as máfias locais.
A despeito disso, os empresários
que apoiam o governo têm poucas queixas.
O governo de Putin continua muito camarada: cobra só
24% sobre a pessoa jurídica e 13% lineares sobre a
pessoa física, por mais alta que seja a renda.
Os analistas estrangeiros também
se maravilham: cinco anos depois do calote de US$ 40 bilhões,
a agência Moody’s, em 8 de Outubro, reclassificou
o risco da Rússia como “bom para investimento”-
cinco degraus acima do Brasil e, pasmem, um degrau acima do
Chile.
A desvalorização
de 6 para 24 rublos por dólar, as altas tarifas de
importação e os baixos preços internos
do gás e do petróleo ( mantidos pelo Estado
a 15% e 30% do preço internacional, respectivamente
), deram competitividade a indústria russa.
Aliado a alta do gás e do
petróleo no mercado internacional e a percepção
de que voltava a existir um projeto nacional, isso permitiu
ao PIB crescer em média 6,4% ao ano de 1998 a 2002.
O superávit comercial da Rússia é o segundo
maior do mundo ( depois do Japão ) e permitiu acumular
US$ 64,3 bilhões em divisas ( 51,5% da dívida
externa ), apesar das fortes restrições a investimentos
externos.
No primeiro semestre de 2003, o
crescimento econômico chegou a 7,2% e Putin prometeu
duplicar o PIB até 2010.
Em dólares, é factível: uma moderada
valorização real do rublo, combinada com um
crescimento anual de pelo menos 4,5% esperado pela maioria
dos analistas, levaria o PIB dos US$ 430 bilhões de
2003 para US$ 910 bilhões, melhorando a capacidade
russa de importar bens de capital modernos e de segurar mão
de obra qualificada.
Por outro lado, as exportações
continuam dominadas por minérios e energia ( 56% do
total ). A indústria ainda é atrasada e sua
localização geográfica, ditada pela estratégia
política e militar soviética, é irracional
do ponto de vista capitalista.
O investimento, embora se tenha recuperado, ainda é
a metade do necessário para um rápido crescimento
sustentado. A infra-estrutura social necessita ainda mais
de recursos: a saúde e a educação continuam
muito aquém dos padrões da era Brejnev. Que
demonstrou há muito que o autoritarismo é muito
bom para esconder os problemas por algum tempo, mas não
para os resolver.
Matéria da Revista Carta
Capital de 15 de Outubro de 2003
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